Folha de Londrina Digital

‘Apagão’ das redes sociais escancara dependência virtual

REDES SOCIAIS E PANDEMIA

Até março do ano passado, o Whatsapp era apenas uma forma de comunicação familiar para a empresária Roseli Praxedes. Dona de um restaurante em Curitiba, ela teve a vida virada de cabeça para baixo com a chegada da pandemia e o fechamento do comércio. “De repente tivemos que fechar as portas e a sensação inicial foi de desespero, de não saber como iria pagar as contas”, recorda. Foi após uma sugestão do filho que ela decidiu transformar o aplicativo de troca de mensagens entre a família e os amigos em ferramenta de trabalho. “Focamos na produção de marmitas e colocamos o Whatsapp como meio de contato com os clientes, que passaram a encomendar o almoço por lá. Foi a nossa salvação”, comenta.

Mesmo após uma aparente normalização e a volta do movimento presencial no restaurante este ano, as entregas seguiram tendo um papel importante no faturamento. Na última semana, perto da hora do almoço, as marmitas já estavam quase finalizadas quando o caldo entornou. A queda de Whatsapp, Instagram e Facebook, que afetou usuários em todo o planeta, atingiu em cheio a comida de Praxedes. “Eu estava envolvida na cozinha e demorei a perceber. Fui me tocar quando vi que já era quase 12h30 e nenhum pedido havia chegado”, explica. Alguns clientes encomendaram pelo bom e velho telefone – sim, as ligações ainda existem! – mas a grande maioria, pelo menos ali, ficou sem o bife a rolê, a especialidade das segundas-feiras no cardápio de Praxedes. “A gente recebe uns 50 pedidos pelo Whatsapp diariamente, nesse dia saíram umas cinco só, para pessoas que ligaram. Foi prejuízo porque a gente prepara uma quantidade de comida com base no movimento normal, então se acontece alguma coisa e não vendemos, tem coisas que não dá para aproveitar e perdemos”, calcula.

Quem também não curtiu isso foi o freteiro Antônio de Lima. Acostumado a receber os chamados para transporte pelo “zap”, passou a tarde dormindo no pequeno caminhão. “Sempre tem algum frete pra fazer e com certeza perdi viagens. Agora é correr atrás do prejuízo”, conforma-se.

As três das principais redes sociais do mundo sofreram uma queda generalizada que durou mais de seis horas, impactando aproximadamente 2,8 bilhões de pessoas no mundo inteiro. A grande ironia do “apagão” foi que até funcionários do Facebook não conseguiam entrar nos prédios da companhia nos Estados Unidos, já que seus crachás de acesso exigem login e senha da rede social, e não estavam funcionando. O Facebook atribuiu a queda das redes à mudança de configuração dos roteadores que coordenam o tráfego de internet entre os centros de dados, mas mais de uma semana depois, ainda não se sabe exatamente o que aconteceu.

Empresas que possuem funcionários trabalhando em home office e instituições que dependem dessas plataformas para realizar agendamentos foram afetadas, mas o maior prejuízo foi para quem usa as ferramentas para fazer negócios — como o restaurante de Praxedes e os fretes de Lima. De acordo com o Facebook, mais de 175 milhões de usuários enviam mensagens com uma conta do Whatsapp Business todos os dias. Além disso, são mais de 50 milhões de pessoas que acessam os catálogos das empresas. Deste total, mais de 13 milhões estão no Brasil. Já uma pesquisa do Sebrae, divulgada em julho, apontou que, ao vender pela internet, 84% dos usuários preferem o Whatsapp. Logo após, aparecem Instagram (54%) e Facebook (51%). O levantamento também revela que apenas 23% dos empresários possuem sites ou canais digitais próprios de venda. “São pequenos empresários, que já vinham de prejuízos com a pandemia, e foram afetados, além de quem está envolvido com o impulsionamento de dados”, afirma o especialista em segurança digital, inovação e tecnologia, Mateus Ribeiro.

O levantamento Digital Adspend 2021 da IAB (Interactive Advertising Bureau) apontou que o volume de recursos em publicidade digital alcançou R$ 23,7 bilhões no ano passado. Isso dá uma ideia do tamanho do prejuízo de usuários que utilizam as três ferramentas para impulsionar negócios, seja com postagens patrocinadas, links de parcerias, vendas e campanhas planejadas. Segundo estimativa feita pela revista

Fortune e pela agência de checagens Snopes, o Facebook registrou perda de aproximadamente US$ 80 milhões em receitas de publicidade durante a paralisação.

Se doeu no bolso das empresas, doeu também no de Mark Zuckerberg, que perdeu aproximadamente US$ 6 bilhões naquela segunda-feira, caindo para a sexta posição no ranking dos homens mais ricos do mundo. Além dos problemas técnicos nas redes sociais, pesaram na queda de quase 5% das ações do Facebook na Nasdaq as denúncias da exgerente de projetos da empresa, Frances Haugen, que revelou à emissora CBS News, na véspera, que o Facebook “coloca o lucro acima da segurança” nas plataformas. Segundo ela, a empresa “está ciente de como suas plataformas são usadas para espalhar ódio, violência e desinformação, e que tenta esconder essa evidência”.

“Além do prejuízo de uma tarde sem negócios, a queda mostrou a importância de se ter canais alternativos, que não sofram tanto impacto em momentos de instabilidade. Um plano B é fundamental”, pontua Ribeiro. Como sugestões para os empresários, o especialista aponta a diversificação de plataformas, a criação de sites e listas de emails e uma relação de contatos atualizados para outras formas de contato. “Depender de apenas uma ferramenta para trabalhar é um risco grande, como ficou provado”, argumenta.

Se há saída para os negócios, será que também há para a dependência dos demais usuários? A arquiteta Renata Matoso admite que foi difícil passar a tarde sem atualizar o feed do Instagram ou conferir as fofocas dos grupos de Whatsapp. “Primeiro achei que fosse problema na minha conexão, xinguei muito, aí percebi que não era só comigo. Mas já estou tão acostumada a ficar conferindo tudo com o celular na mão que me senti no meio da floresta, incomunicável”, brinca. O blecaute, claro, gerou muitos memes e piadas. O jogador brasileiro Lucas Moura, atualmente no Tottenham, da Inglaterra, brincou em uma postagem no Twitter. “Com a queda do Whatsapp e Instagram consegui conversar um pouco com a minha esposa. Muito gente boa ela”, postou Moura na rede social que, incólume aos problemas das concorrentes, bombou com a migração de grande parte dos usuários.

Para a antropóloga Maria Cristina Neves, apesar das brincadeiras, a situação deveria motivar uma reflexão. “Toda essa questão coloca em pauta nossa dependência das redes sociais, do digital. E, para muitas pessoas, é um problema sério”, alerta. E ele tem nome: nomofobia. O termo surgiu no Reino Unido e vem da expressão “no-mo” ou “no-mobile”. Em tradução livre, “sem celular”. A síndrome resulta em ansiedade, insegurança e depressão devido ao processo de isolamento social e empobrecimento das relações socioafetivas. Segundo dados da pesquisadora brasileira Anna Lúcia King, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), 34% dos entrevistados de diversas faixas etárias e classes sociais, afirmam ter alto grau de ansiedade quando seus aparelhos celulares não estão por perto. “É um debate que é deixado de lado em nossa sociedade mas que, mais cedo ou mais tarde, a fatura vai chegar”, lamenta Neves.

Para a psicóloga Andrea Ribeiro, o apagão do Facebook pode abrir caminho para uma mudança de comportamento. “Os negócios podem enxergar outras oportunidades. Já as pessoas podem fazer uma análise do impacto das redes sociais nas suas vidas. Aumentar o tempo longe do celular, não se cobrar tanto se estiver numa área sem sinal. É um processo gradual, para se fazer aos poucos, já que as mudanças de hábito não costumam ser fáceis. O importante é pesar o que é relevante e o que não é em nossa rotina, o que é realmente urgente”, sugere. “Estar em uma reunião com os amigos ou na mesa com a família, são eventos que não ocorrem a todo instante, diferente do celular, que está o tempo todo em nossa mão. Então aproveitar esses momentos ao máximo é sempre mais saudável. Será que aquela mensagem é mesmo urgente? Desacelerar precisa ser uma tendência”, complementa Ribeiro.

Enquanto isso, no mundo da tecnologia, discute-se ainda o monopólio de importantes redes sociais nas mãos de apenas uma empresa. “O que salvou a comunicação naquele dia foram outras plataformas, como Twitter e Telegram. Portanto, essa concentração volta ao debate e pode haver mais pressão de órgãos americanos para que o Facebook venda algumas das plataformas. Mas é uma briga que ainda vai longe”, avalia Mateus Ribeiro. Certo mesmo, por enquanto, é que vai ser difícil desacostumar da vida 100% conectada.

MARCOS MARTINS ESPECIAL PARA A FOLHA

Frases como “pense pelo lado positivo”, “você atrai o que você emana”, “continue sorrindo apesar das dificuldades” acompanhadas com a hashtag #Goodvibesonly (Boas vibrações somente, em livre tradução) já somam mais de 14 milhões de publicações no Instagram. Apesar de parecerem simples conselhos ou frases motivacionais, a mensagem acaba se tornando um mantra a ser seguido, ignora e reprime outros tipos de sentimentos e emoções. Na área da psicologia, esse fenômeno já vem sendo estudado e é chamado de “positividade tóxica”.

Segundo o psicanalista Yohann Saracho, essa cultura “good vibes” tende a ser problemática e pode desencadear outros transtornos como a depressão, por exemplo: “se eu sou uma pessoa que fica guardando muitas coisas, essa tensão toda que está acumulada em mim vai acabar desaguando em um outro local”, explica. “Essa não aceitabilidade da fragilidade humana fica muito pior quando a gente entra no campo da saúde mental” conclui.

Saracho argumenta que, quando se cria uma cultura que alimenta o sentimento de “eu posso fazer as coisas, só que depende exclusivamente do meu esforço” ao mesmo tempo em que se é constantemente bombardeado nas redes sociais com depoimentos de pessoas que estão todo dia mostrando como elas conseguiram e que esse caminho não é difícil, todos esses fatores contribuem para uma cobrança de produtividade excessiva que, consequentemente, afeta a saúde mental.

E isso fica mais evidente ao analisar os dados sobre transtornos mentais no Brasil. Segundo uma pesquisa divulgada pela OMS (Organização Mundial da Saúde) em 2020, o país possui a maior taxa de pessoas com transtornos de ansiedade no mundo e é o quinto em casos de depressão. E isso não está ligado exclusivamente à questão biológica, mas também à questão social, como explica o psicanalista: “os transtornos mentais são muito mais o reflexo de uma época do que necessariamente algum desequilíbrio fisiológico”.

A partir do momento em que a positividade e a felicidade são exibidas como a única forma de se obter sucesso na vida, ignora-se todos os obstáculos e questões sociais que podem existir e que impedem de atingir determinada conquista, caindo na velha questão da meritocracia. Segundo a socióloga Franciele Rodrigues, “ter a força de vontade como principal motor” é complicado, uma vez que “isenta toda a responsabilidade das outras instituições”. Além disso, pode gerar uma angústia ao questionar “como que todo mundo consegue e eu não?”, o que retorna novamente para a questão de saúde mental, como um ciclo.

Um dos assuntos que tornou-se viral no Tiktok e no Instagram durante a quarentena foi o “Era para ser só 15 dias e eu…”, em que os influenciadores digitais postavam suas conquistas e todo sucesso que alcançaram mesmo estando em uma pandemia. Isso acabou gerando uma discussão sobre comparação de produtividade, já que ter um perfil recheado dessas publicações e com os rótulos #gratiluz, #gratidão, #goodvibes, faz parecer que todo mundo está bem e fazendo algo produtivo, menos você. “É muito complicado quando você tenta vender isso como fórmulas universais, como se coubesse na realidade de todo mundo”, explica Rodrigues.

“É um meio muito difícil porque ele pede para gente estar feliz o tempo todo”, relata Isabella Mendonça, de 21 anos, estudante de medicina na UNIMAR (Universidade de Marília), que compartilha em sua conta no Instagram sua rotina após ser diagnosticada com Síndrome de Melas, uma doença mitocondrial rara e que não tem cura. “As pessoas pedem uma força, uma inspiração e com isso, você precisa assumir um papel que muitas vezes não é real, só para fazer as outras pessoas felizes”.

Isabella percebeu que tratar de assuntos não relacionados a algo positivo traz um certo incômodo por parte de alguns seguidores. Negar que existam esses sentimentos faz com que se idealize uma realidade artificial, gerando, eventualmente, mais frustração. “Quando a pessoa entra nessa demanda de sempre estar bem, acaba se criando uma certa cultura em que as pessoas têm essa rigidez de sempre estar bem. E é algo impossível, porque se você sempre está bem, você está condenado a sempre estar frustrado”, elucida Saracho.

O conselho do psicanalista é “pensar no quanto a gente consegue se desvincular desse “good vibes”, dessa glorificação de uma produção e que somente no aspecto produtivo a gente consiga atingir um certo grau de felicidade”. É importante não relacionar diretamente o otimismo exacerbado ao sucesso ou a uma conquista pessoal. Apesar de uma solução específica para o problema ser subjetiva, ou seja, cada caso é um caso.

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2021-10-16T07:00:00.0000000Z

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