Folha de Londrina Digital

Nosso último riso...

João dos Santos Gomes Filho, advogado

Morre Jô Soares, nossa maioridade pensante. A tristeza do passamento reclama lembranças que o tempo não leva. Por muitos anos a dignidade engraçada daquele sujeito gordo e arguto, fino articulista do cotidiano, pautou o mínimo de decência pelas telas da então deusa platinada da tela doméstica de latino américa.

Foi essa decência sem igual que possibilitou a Jô dar voz a então Presidenta Dilma em plena fritura golpista, patrocinada por um arremedo político de centro que desafia a intelligentsia pátria pelos corredores e memória do Congresso Nacional.

Jô tem tanto relevo que o seu passamento segue pautando os dias que sucedem os costumes, num desvelo de pesar que alumia a ferida dos que nele tomavam conforto. Sigo sendo um dos muitos que ouviam na voz do gordo a pintura de um lugar melhor – um sonho feliz de cidade, como disse Caetano.

No ponto, não consigo deslembrar seus bordões inesquecíveis. “Põe ponta Telê. Põe ponta.” Mineiramente Telê discordava – será por isso que o treinador afamado jamais nos deu uma copa do mundo?

Além de tudo, Jô alocou em narrativa românticopolicial o roubo de um violino a ser investigado por Sherlock Holmes no Rio de Janeiro, no Segundo Reinado, com ênfase na circunstância física de um Xangô (na rua Baker).

Assim é que polarizou o convívio de elementos afro (o meu leitor há de saber o que é um Xangô) com a modernidade londrina recém-saída de sua revolução industrial, levando a ironia fina de sua prosa até o Rio de Janeiro, durante o Segundo Reinado (julho de 1840 a novembro de 1889).

Daí em diante haja vatapá e elementos culturais distintos a darem prumo ao enredo investigativo. Jô sempre foi multicultural. Era a própria Nova York vestida de gente – gorda e alegre.

Deveras, Jô está muito além de sua época. Foi (segue sendo) alguém cuja palavra jamais esteve nua, desacompanhada. O Gordo superlativava a própria circunstância. Seu grande (imenso) veículo sempre foi a palavra.

Nesse caminho, Jô não fazia uso descompromissado de suas personagens, tampouco de seus programas de entrevistas onde, perguntando e interagindo, segue incomparável.

Me recordo bem, lá pelo final dos anos oitenta, de uma sua entrevista (Jô Onze e Meia, pelo SBT) que marcou minha vida à época. Jô entrevistava Luís Carlos Prestes, o Cavaleiro da Esperança.

Prestes foi militar e político. Comunista militante, intuiu talvez a personalidade política mais marcante de nossa história. Perseguido e preso pela ditadura do estado novo, foi vítima de nossa vergonhosa covardia institucional (sempre curvada ao interesse ditatorial), naquilo que o Supremo de época ordenou a extradição de sua companheira (então grávida de seu filho), a judia Olga Benário, para morrer na Alemanha nazista, em um campo de concentração.

Jô, um ano após a promulgação da Carta Política de 1988, deu voz a Prestes pelo viés da entrevista histórica a que me refiro. Deve ter sido a derradeira aparição pública relevante do Cavaleiro da Esperança...

Lembro do início da conversa, com Jô se lhe referindo enquanto camarada dos camaradas. Prestes, após se reconhecer um camarada (lógico que sou um camarada), descortinou o novelo da própria história, demarcando motivos de sua esperança. Foi uma entrevista única e, se não me engano, está em vídeo no YouTube.

Mas não é de Prestes que quero falar, muito embora vivamos uma época na qual sua grandeza histórica faz muita falta, e sim de seu entrevistador. Jô marcou os caminhos (e descaminhos) por onde passou. Sua régua sempre inesgotável foi a história, para onde recorria sempre que antevia um motivo. Mescla rara de inteligência elevada com senso de lealdade ligado ao fato histórico, Jô fez (segue fazendo) corar muito pretenso comediante que hoje acredita ser apresentador de talk show. Vamos, todavia e aqui, por partes e com vagar, para não parecer que falo de alguém que se diga gentil...

A medida histórica de Jô dita o desenvolvimento ritmado da entrevista, naquilo que não se trata de perguntar e sim articular a narrativa então por se fazer.

Mas o ritmo não é gratuito, fruto de uma pauta préproduzida. A entrevista nestes moldes, para não cair no lugar comum e derivar para a tolice (que, via de regra, é o máximo que a pessoa gentil consegue produzir), depende demais do conhecimento e da capacidade do perguntador.

Jô sempre será o cara cuja pergunta exige uma inteligência mínima para articular com a imaginação. Sua presença física apontava um leque de hipóteses intelectualmente desafiadoras e, nessa direção, ele conduzia nossa curiosidade, aguçando a angústia de não crer no impossível.

Foi tão grande que soube perdoar o atropelador de sua mãe, lá pelos nos anos setenta. Em lugar da raiva e da mágoa que desconformam, Jô preferiu ver a esperança na atitude do taxista, desenhada no socorro prestado, bem assim no fato dele ter ficado no hospital ao lado do pai do humorista.

São situações descompassadas que se perderam no tempo, suposto que não compõe nossos dias de tiro e assassinato do desafeto político em festa de aniversário, morte em shows musicais, assassinato de ativistas e de políticos gauches. De palavras que sinalizam apoio e apologizam o mais conhecido dos torturadores que a nossa ditadura militar pariu – Tristes e desavergonhados trópicos!

Jô, efetivamente, não era desse mundo. Saudade Pai. Veja o Gordo por aí.

Opinião

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2022-08-16T07:00:00.0000000Z

2022-08-16T07:00:00.0000000Z

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